O caso de Sônia Maria de Jesus, mulher negra, surda e com visão monocular, escancara a permanência do trabalho escravo doméstico no Brasil. Resgatada após viver cerca de 40 anos em regime de exploração, sem salário, folgas ou direitos, Sônia foi autorizada pela Justiça a retornar ao convívio da mesma família investigada por mantê-la nessa condição, decisão que especialistas classificam como revitimização.
Laudos psicológicos e sociais apontam que Sônia não domina Libras, não sabe ler, tem visão monocular e baixa autonomia para atividades cotidianas, o que a torna extremamente vulnerável. Ainda assim, alertas técnicos foram ignorados ao se permitir o retorno ao ambiente de risco.
O núcleo familiar inclui um desembargador. A esposa do magistrado foi incluída na chamada lista suja do trabalho escravo, reforçando o debate sobre desequilíbrios de poder e a necessidade de blindagens institucionais para que vítimas sejam protegidas com prioridade absoluta.
O caso ganhou repercussão internacional com questionamentos formais sobre a resposta do Estado brasileiro. A crítica central é a contradição entre o resgate e decisões judiciais que, na prática, anulam a proteção e reafirmam uma lógica de dependência violentamente assimétrica.
O histórico do país mostra que milhares de pessoas são resgatadas anualmente em situações análogas à escravidão, majoritariamente negras, pobres e com baixa escolaridade. No trabalho doméstico, as investigações relatam vínculos médios de mais de duas décadas, o que confirma a necessidade de políticas de reinserção consistentes.
O caso de Sônia evidencia um gargalo: o resgate não pode terminar no portão. É dever do Estado garantir acolhimento, renda emergencial, cuidados de saúde, apoio psicossocial, alfabetização e ensino de Libras, para que a vítima não retorne ao ciclo de exploração por ausência de alternativas.
O desfecho judicial será decisivo. Há três caminhos evidentes: manter a autorização que a recoloca em risco, reverter integralmente a decisão garantindo liberdade com suporte integral ou libertá-la sem assegurar política pública de reintegração, perpetuando o abandono pós-resgate.
Para prevenir novos casos, medidas objetivas são urgentes: vedar por lei o retorno da vítima ao ambiente explorador, capacitar magistrados e operadores do sistema de justiça sobre dinâmicas contemporâneas da escravidão com ênfase em raça, gênero e deficiência, e instituir uma política nacional de acolhimento com equipes especializadas e orçamento próprio.















